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A beleza e os desafios de "As Coisas Como Elas São"

Poucos livros conseguem capturar, com tanta sensibilidade e profundidade, o que significa amar alguém que está em um processo de autodescoberta como As Coisas Como Elas São, de Laurie Frankel. Por Thaiane Machado

O clube do livro do bunker















Algumas leituras não passam apenas pelos olhos – elas atravessam a pele, o peito, os espaços da memória onde guardamos tudo o que não conseguimos nomear. As Coisas Como Elas São foi um espelho, uma confissão coletiva, um sussurro que, de alguma forma, nos lembrou que experienciar é sempre um ato de coragem. Quando comecei essa leitura, pensei que seria sobre uma família lidando com a transição de uma criança. Mas logo percebi que era muito mais do que isso. Era sobre amar e, ao mesmo tempo, temer o que o mundo pode fazer com quem amamos. Era sobre se permitir mudar – porque amar, de verdade, exige uma transformação constante.


Ao contar a história de Poppy, uma criança trans, e seus pais, Rosie e Penn, a autora apresenta uma narrativa emocionante e nos convida a refletir sobre identidade, pertencimento e o papel da família na construção de quem somos. Frankel constrói sua narrativa com um olhar que foge da simples categorização de certo ou errado. Aqui, não há fórmulas prontas nem soluções mágicas – apenas um amor que precisa aprender. Rosie e Penn são pais amorosos, comprometidos com a felicidade dos filhos, mas também são humanos, cheios de dúvidas, medos e inseguranças. Seu maior dilema não é se aceitam ou não Poppy como ela realmente é – essa resposta vem quase naturalmente – mas sim como protegê-la de um mundo que ainda não está pronto para acolher crianças como ela.

"Quando abril chegou, Claude já tinha partido, e Poppy, enfim, com os cabelos na altura das orelhas em um corte curto, tinha aparecido por completo. [...]. Agora ela descia para o café da manhã com entusiasmo, sorriso antes mesmo de pisar na cozinha, gargalhando com os irmãos, quase flutuando de alegria, e foi só então que os pais perceberam quão tristes haviam sido as manhãs cheias de trocas de roupas de Claude" - Laurie Frankel

Ao longo da história, a autora nos leva a experienciar o dilema parental de uma forma quase visceral. O medo de Rosie, uma mãe que entende que sua filha trans não será sempre recebida com respeito; a leveza de Penn, um pai que quer apenas que Poppy seja feliz; e os irmãos, que reagem de formas diferentes à transição da irmã. Todas essas camadas tornam a narrativa complexa e real, fugindo de um retrato idealizado da aceitação familiar.

A autora acerta ao evitar uma história melodramática ou panfletária. Em vez disso, ela nos entrega um romance sobre relações humanas, sobre erros e acertos no caminho da aceitação, e sobre o que significa criar filhos em um mundo que impõe tantas expectativas sobre quem devemos ser. Sua escrita delicada e fluida nos conduz por um enredo que faz sentir – e é impossível sair dessa leitura sem alguma transformação interna.


Mas, se há um ponto que pode gerar desconforto, é a maneira como algumas decisões tomadas pelos pais de Poppy acabam protegendo demais sua identidade, quase como se esconder fosse a única forma de garantir sua segurança. O dilema entre visibilidade e proteção é real, mas poderia ser mais aprofundado em alguns momentos, especialmente no impacto que essa escolha tem na própria Poppy. Ao fim da leitura, As Coisas Como Elas São nos deixa com mais perguntas do que respostas – e talvez essa seja sua maior força. Afinal, não há um único jeito de experienciar a vida, a identidade e a parentalidade. O que Frankel nos mostra é que amar é, acima de tudo, estar disposto a aprender – e a desaprender, se necessário.


No grupo, enquanto falávamos sobre Poppy, Rosie e Penn, outras histórias começaram a emergir. Mães que, como Rosie, aprenderam no caminho o que significa ser um porto seguro para seus filhos. Mulheres que já sentiram o peso de serem moldadas por expectativas que nunca escolheram. E, em algum momento, percebemos que, de diferentes formas, todas nós já fomos Poppy, já fomos Rosie, já fomos Penn.


Experienciar a leitura desse livro foi ser levada para fora de mim mesma e, ao mesmo tempo, mergulhar mais fundo no que sou e no que vivi. Foi lembrar das vezes em que precisei me explicar para o mundo. Ou das vezes em que vi alguém ao meu lado se dobrar para caber em um espaço que não lhe pertencia. O que ainda precisamos experienciar para nos tornarmos mais livres? Para sermos quem somos sem medo, para amarmos sem hesitação, para sermos o abraço seguro de alguém que ainda busca sua verdade?


Talvez nunca tenhamos todas as respostas. Mas esse livro nos ensinou que o mais importante é estar disposta a aprender – e a se permitir sentir, sempre.




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